Sucesso da Netflix, série Round 6 envolve questões jurídicas

Você já deve ter ouvido falar na série Round 6, mais recente sucesso da Netflix, serviço de streaming de filmes e séries de televisão. A trama coreana traz um grupo de pessoas endividadas que é convidado a participar de um jogo para tentar ganhar um prêmio milionário. Entretanto, eles não têm ideia de que esse jogo irá colocar em risco as suas vidas. A disputa envolve jogos baseados em brincadeiras da infância, mas com o diferencial de que a derrota traz mortes violentas para os participantes.
Round 6 virou um grande fenômeno na internet, foram criados produtos como fantasias e roupas da série, há memes espalhados em todas as redes sociais, e, embora tenha conteúdo violento e classificação indicativa de 16 anos, tornou-se febre também entre as crianças e adolescentes, fazendo ressurgir o debate sobre o acesso dos pequenos a esse tipo de conteúdo. Já a crítica social da história fomentou debates e análises desde o seu lançamento.
O que muita gente não sabe é que o tema desse fenômeno do streaming tem tudo a ver com a nossa Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e está bem próximo da vida real.

Mas o que a LGPD tem a ver com Round 6?
A questão da vulnerabilidade de dados é muito nítida na série coreana, afinal, quem é responsável por esse jogo de vida ou morte possui informações pessoais de quem buscam como jogadores, eles sabem sobre a situação financeira dessas pessoas, se estão desempregadas, quais são suas dívidas, entre outros.
Os participantes são escolhidos com base em dados, que ajudam a coagir os envolvidos a participarem. Ou seja, a falta de controle sobre seus próprios dados e a ausência de proteção a eles acaba deixando as pessoas vulneráveis e colocando-as em risco.
Round 6 traz a questão das consequências da vulnerabilidade dos dados pessoais de forma bastante extrema, mas é fato de que esse problema também é vivido pela nossa sociedade.
Um dispositivo como a LGPD impediria esse tipo de procedimento utilizado na série, pois a lei traz hipóteses de tratamento de dados, como cumprimento de norma legal, consentimento, legítimo interesse e execução de contrato, regulamentando o uso desse tipo de informação.
Podemos dizer que na série coreana houve um desvio na finalidade dos dados em questão, segundo o artigo 6 da LGPD, que define, por exemplo, que dados para crédito podem ser utilizados apenas para crédito. Assim, os dados dos jogadores foram utilizados sem consentimento para outros fins.

Proteção de dados pessoais
Legislações de proteção de dados pessoais, como a LGPD, exigem que as instituições adotem uma “ética de dados”, tratando essas informações pessoais com base em princípios definidos de legitimidade, transparência, segurança, finalidade específica e minimização. Round 6 escancara como é o uso abusivo dessas informações.
Em comum, todos os participantes têm dívidas e problemas financeiros. Quem fazia a seleção sabia disso e utilizava essas informações para estimular e pressionar as pessoas a participarem do jogo. Em muitos momentos da série, participantes se perguntam como o jogo sabe tanto sobre eles e o jogo dá a entender que os dados possivelmente vêm da instituição financeira em que a maioria dos participantes têm dívidas e contas, indicando que houve desvio de finalidade ao utilizar esses dados pessoais.
A legislação de proteção de dados vem nessa direção, ela não proíbe o uso das informações, mas exige que isso seja feito de forma transparente para que as pessoas tenham controle sobre seus próprios dados.
Podemos ainda traçar outro paralelo entre Round 6 e a LGPD quando falamos dos “termos” do jogo e da clareza de informações. Os jogadores questionam quais são as regras do jogo na série. Para validar o consentimento dos titulares das informações, a LGPD determina nos artigos 8 e 9 que as instituições devem ter políticas e termos claros, adequados e ostensivos, vedando o tratamento em caso de vício de consentimento.

Implicações criminais
Quanto à questão de crianças e adolescentes tendo acesso a cenas violentas, será que há implicações criminais para a Netflix?
Embora essa seja uma preocupação válida de pais, educadores e escolas, não há base para consequências jurídicas sobre a exibição da série, do ponto de vista criminal, pois há a classificação indicativa para maiores de 16 anos e cabe aos pais fazer o controle do que os seus filhos assistem.
Ainda que algo com consequências violentas fosse feito com base na trama, também não seria possível responsabilizar a plataforma de streaming por lesões ou mortes.

Processos contra a Netflix
Além de todas as questões levantadas até aqui, a Netflix tem sido vítima de dois processos na Justiça relacionados à Round 6.
Segundo a revista Rolling Stone, o primeiro processo diz respeito ao alto tráfego de dados usados pelo público sul-coreano para assistir à obra e estaria sendo movido por uma empresa de internet local, a SK Broadband.
Eles teriam afirmado que o tráfego de dados para assistir Round 6 é imenso e exige que a plataforma cubra os custos de manutenção desse tráfego, solicitando uma indenização milionária.
Já a outra ação é movida por uma empresária coreana e está justamente relacionada ao uso de dados pessoais. Em uma cena da série, vemos um cartão com um número de telefone, que é real e pertenceria a essa empresária. Ela estaria recebendo ligações e mensagens relacionadas à Round 6. A Netflix estaria trabalhando para solucionar a questão, inclusive editando cenas em que o número aparece. A mulher teria negado a oferta de indenização.
Essa questão envolve novamente a proteção de dados, no caso, a anonimização, prevista no artigo 12 da LGPD. Já o artigo 46, inciso II, prevê a aplicação de “privacy by design”. O ideal teria sido utilizarem dados anonimizados ou fictícios.

Fonte: Migalhas
Imagem: Divulgação/Netflix